Nov 25

Douglas do Prado, 64 anos

Douglas do Prado

1957 -

Era presença, amizade, carinho e impaciência...

Prazer, Vovô.

Esta, minha neta, não é uma carta de tristeza, tampouco de despedida. É apenas o relato de um velho homem que, aos 63 anos, desencarnou precocemente vitimado por uma negligenciada pandemia mundial. Mas eu não deixei este plano sem lutar – que fique claro. Pela nossa família, eu lutei. Pelos três meses da sua vida, ainda em formação no útero da minha caçula, eu lutei.

Quando descobrimos que você viria ao mundo, já vivíamos em isolamento social. Por conta disso, nossos cuidados se redobraram. Os meus, principalmente. A idade, a leve obesidade e alguns probleminhas respiratórios me tornavam um alvo no radar do impiedoso coronavírus. Máscaras respiratórias e álcool em gel foram inclusos ao nosso cotidiano, assim como, peculiarmente, exames de ultrassonografia e previsões de como seria sua chegada. Como faríamos para driblar o “corona” e encher você de carinho?

Você se tornara presença diária em minhas orações superiores clamando por mais alguns anos de vida neste plano. Por tudo o que eu vivi, por todas as causas a que eu me dediquei, pela década que sobrevivi longe de seus pais, que buscavam um futuro melhor em outra nação, eu me julguei merecedor de um tempinho ao seu lado. Alguns conselhos, algumas conversas… os mimos de um vovô que revive a paternidade… Isso nos teria feito bem.

Seus pais certamente vão lhe contar sobre mim. Sobre minhas opiniões fortes. Sobre meu estilo crítico de ver as coisas. E, claro, como todo ser humano, com seus deslizes perdoáveis ao longo da caminhada. Durante a pandemia, não podia ser diferente. Cobrei acidamente dos governantes por políticas de vacinação mais ágeis, por maior fiscalização em prol da vida e também balburdiei loucuras – afinal, eu tinha que me manter vivo para você. Quem não delirou por alguns minutos nessa situação claustrofóbica?

Quando descobri que havia sido infectado, por mais precauções que tenha tomado, não imaginei que partiria. Eu não queria virar mais um número dentro dessa estatística negativa. Não queria cravar o nome da nossa família nos obituários que estampavam a mídia diariamente e a todo instante. Novamente, eu lutei. Mas fui vencido. Eu me juntei a mais de outras setecentas mil vidas perdidas nas mesmas circunstâncias.

Chovia bastante na madrugada em que eu parti. Uma noite de março. Para mim, eram lágrimas. Muitas. Foi como se todo pranto daqueles que me amavam fosse derramado naquele dia. E pronto! Por você, as lágrimas teriam de cessar. Nossa princesinha, que ainda seria batizada com nome de santa, merecia todas as energias positivas possíveis. A morte e a vida fazem parte do ciclo deste plano. E, a partir desse momento, nós celebrávamos a sua vida.

Sei que cumpri meu papel. Terá pais incríveis e íntegros. Uma família zelosa. Mas saiba: a conexão da nossa família é mágica. Em oração, sua mãe disse que “o nosso amor é além da vida”. Quando você nasceu, num agosto gelado, assim que você regressou para o peito dela, logo nos primeiros minutos fora da calmaria, eu estava ali. As lágrimas que corriam pelos olhos dela eram de alegria, gratidão e apresentação: “pai, esta é a nossa Catarina”. Tudo em pensamento, numa conexão além da vida.

Com amor, vovô Douglas. Desfrute desta vida, minha neta.

Homenagem de Felipe Franco Bieging, seu amigo. Esta crônica foi vencedora do 1º Concurso Literário da Fundação Cultural de Balneário Piçarras.

Douglas do Prado nasceu em São Paulo (SP) em 29/06/1957 e faleceu em Camboriú (SC) em 17/03/2021, vítima do novo coronavírus.